Por Joyce Enzler
Nesses tempos sombrios, de incertezas, desesperança e medo diante de uma pandemia e da forma como governantes e toda a população irão lidar com ela, conversamos com a pesquisadora do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde (DEMQS/ENSP/Fiocruz), Elvira Seixas Maciel, sobre desigualdades, coletividade, distanciamento social e solidariedade. Elvira, médica e com doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criou o blog Literatura Pandemia Experiência – Entendendo-nos com o Tempo para nos instigar a enxergar o poder da filosofia e da arte, nesse ensaio sobre a cegueira em que estamos sobrevivendo, especialmente no Brasil.
Na entrevista, decidimos respeitar as inflexões e ênfases da pesquisadora, mesmo contrariando os manuais jornalísticos. Nesse momento, precisamos de informação científica, do bom e velho jornalismo, mas também de palavras que nos deem sentido e nos entrelacem em uma enorme teia social e solidária.
Como você responderia à pergunta que faz em seu blog: Como viver em tempo de pandemia e isolamento social?
Elvira Seixas: A maior parte de nós sobreviverá à pandemia. Esse acontecimento marcará a história de países e continentes. De famílias e pessoas. Devemos, todos, colaborar para deter a disseminação do vírus e tentar não levar ao colapso o sistema de saúde brasileiro. Precisamos ser solidários não só quanto à adoção de medidas que contribuem para a não circulação do vírus, mas estar atentos aos graves problemas sociais, às profundas desigualdades e injustiças na nossa cidade, no país e no mundo. Então:
- Mantenha-se informado. Paranoia e histeria não são consequências do conhecimento dos fatos e do que deve ser feito nesse momento. Informe-se diariamente. Mas não deixe de pensar no OUTRO como alguém que você, assintomático, pode contaminar, em TODOS como potenciais contaminados, e nos DOENTES como pessoas que exigem cuidado em diferentes níveis de complexidade
- Conheça as iniciativas fraternas – da impressão 3D de máscaras e doação por microempresários, à compra e distribuição de alimentos e produtos de higiene. Você pode optar por atuar na linha de frente, distribuindo quentinhas aos sem-teto ou pode doar recursos para que organizações não governamentais e grupos de apoio possam fazê-lo. Pense no OUTRO como semelhante, como alguém que tem necessidades fundamentais e contribua como puder para que tais necessidades possam ser satisfeitas;
- Mantenha-se em casa exceto quando for muito necessário ir às ruas, mas cuide de sua rede social de apoio, mantenha a saúde mental. Converse com amigos virtualmente. Desconecte-se por um tempo da tensão que a situação vivida pelo mundo provoca. Fale com alguém que esteja isolado, que não tenha parentes próximos, disponha-se a acolher com palavras e atitudes que não ponham em risco nem a saúde alheia, nem a sua. Não há data marcada para o retorno à normalidade. Poupe-se sem egoísmo, isso o manterá em condições de ajudar, precisamos e ainda vamos precisar de muita ajuda;
- Siga sua consciência, seja fiel a si mesmo, faça o melhor que pode pela sua saúde e a saúde da coletividade. Não perca de vista o coletivo. Ninguém (felizmente) está sozinho ou é o centro do universo físico, social, simbólico e afetivo. Não se deixe perder em seus medos ou em sua subjetividade. Essa regra vai ajudá-lo a voltar e encarar o mundo enquanto for preciso manter-se firme e quando as coisas forem voltando ao normal.
Para os que vivem na informalidade, como ambulantes, para os que estão desempregados e para as pessoas em situação de rua, como sobreviver?
Elvira Seixas: O Estado é, segundo o artigo 194 da Constituição Federal de 88 o principal responsável pelo estado de seguridade social, pelas condições concretas de vida da população brasileira. E cabe também ao Estado trabalhar com seriedade, competência e transparência de modo que a população seja informada e possa confiar nas ações implementadas. Medidas econômicas agora não devem estar em primeiro plano em lugar algum do mundo, ainda menos em países marcados por iniquidades. A confiança no Estado ajuda as pessoas a acatarem medidas de saúde pública, reduz o medo, o desespero do abandono, da fome, da deriva. A CONFIANÇA MÚTUA nos ajudará, como Nação, a sairmos mais fortes da pandemia.
Também cabe a nós contribuir como pudermos: com insumos hospitalares (há vários fazendo equipamentos de proteção individual –EPI – paraprofissionais de saúde), distribuindo ou facilitando a distribuição de gêneros de primeira necessidade, apoiando outras pessoas pela escuta atenta e por uma fala adequada no momento certo. O Centro de Valorização da Vida tem anunciado o treinamento de novos voluntários. Pense em como você pode, pense nas inúmeras possibilidades de ajudar.
Alguns países, como a Itália, não decretaram quarentena logo nos primeiros casos do Covid-19. Colocaram a economia acima da vida. No entanto, após um mês e 4,4 mil mortos, o prefeito de Milão constatou que errou ao incentivar que as pessoas continuassem com suas atividades econômicas. No Brasil, o presidente acha um excesso a quarentena. Pensa que a economia não deve parar por conta de uma “gripezinha”, como ele chama, ou teremos um colapso econômico. Como epidemiologista, quais as medidas econômicas e sanitárias que você acha que deveriam ser tomadas no país?
Elvira Seixas: A despeito dessa crise entre política e recomendações técnicas, estamos informados por técnicos experientes e cabe a nós, como sociedade, agir solidariamente e isso significa diminuir a circulação do vírus. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Ministério Público Federal (MPF) veem-se às voltas com medidas jurídicas diante do comportamento público inadequado do presidente Jair Bolsonaro. Precisamos manter o consenso técnico, estimular a confiança nas medidas propostas, nos enxergarmos como um coletivo.
Os governantes que se atrasaram em anunciar as medidas de isolamento social voltaram atrás e se desculparam na Itália, na Inglaterra, no México. Não esperemos o mesmo para desconsiderar atitudes prejudiciais a todos nesse momento. Mais uma vez: COLETIVIZEMOS A EPIDEMIA e, como sociedade, como coletivo teremos mais força.
A maior preocupação de cientistas, líderes comunitários e urbanistas, nesse momento, é a entrada do coronavírus em um ambiente com saneamento e mobilidade precários. O que de imediato pode-se fazer para conter a disseminação do Covid-19 nas favelas e periferias?
Elvira Seixas: Seguir as medidas preconizadas de modo que quem pode ficar em casa, fique, contribuindo com a menor circulação do vírus. Há áreas sem acesso à água encanada, outras ligadas à rede que, nesse momento crítico, vem apresentando problemas na distribuição. Facilitar o acesso a água, sabão, desinfetantes e álcool gel. A prefeitura anunciou medidas de acolhimento de idosos que vivem em situações de risco (que vêm somar-se ao risco biológico).
A valorização da Saúde Comunitária, dos Agentes de Saúde, dos profissionais de saúde que atuam na Atenção Primária também é fundamental, sobretudo se foi estabelecida relação de confiança entre os agentes de saúde e a população. A vacinação contra o H1N1 também deve ser vista como inquestionável e medida prioritária para os grupos de risco neste momento. E muita informação: a consciência de que não é preciso o contato com alguém gripado para adquirir o novo coronavírus, de quais são os sintomas e o que fazer em uma escala de gravidade pareando quadro clínico e acesso a serviços.
Mas é preciso ressaltar: Essa pergunta nos faz pensar durante e após essa pandemia na gravidade da situação de saneamento ambiental, habitacional e trabalhista do país. Acabada a emergência, pensemos na formação de pessoas “inteiras”, atentas, comprometidas com a coletividade. Isso influenciará, a médio prazo, inclusive a escolha de representantes e governantes. Pensemos também na formação dos profissionais de saúde, na determinação social da doença, na dissociação produzida pelo ensino de graduação (que muitas vezes se perpetua na pós-graduação) entre biologia e sociedade.
Indo mais longe: entre o homem e o ambiente - considerado da microbiota aos grandes acidentes geográficos, passando pelas relações econômicas e sociais estabelecidas no espaço. E a geopolítica. Somos UM planeta. Virchow, no século XIX, via nas epidemias signos de estarmos atravessando momentos críticos. O tema Antropoceno precisa ser mais discutido. A complexidade do real precisa dialogar constantemente com o trabalho científico e com a pedagogia. E as instituições científicas com a sociedade.
Enfim, a História nos apresenta esse momento doloroso e devemos fazer o melhor possível para que o maior número de pessoas cheguem bem ao outro lado desse abismo que começamos, há três meses, a atravessar.